sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A Dignidade da Pessoa Humana



Autor: Dom Eusébio Oscar Sheid


Um dos mais graves problemas com o qual a Igreja se defronta, neste início de milênio, está relacionado com a Bioética e sua liceidade. Muito do que se tem discutido a respeito deste tema fica restrito a uma certa casuística, isto é, às respostas a situações concretas que se apresentam cotidianamente. O caso mais recente, aqui no Brasil, foi o do aproveitamento de células-tronco oriundas de embriões congelados. Em ocasiões como esta, verifica-se uma busca de soluções imediatistas, que consideram os fins, sem preocupação com os meios.
Por este motivo, desejo desenvolver algumas reflexões que questionam a aplicação indiscriminada da Bioética, confrontando-lhe as motivações e finalidades, contrapostas ao valor ontológico inquestionável de cada pessoa humana.
Há uma crise de valores na sociedade contemporânea, que se enraiza no relativismo moral e na concepção utilitária da felicidade. Produto do individualismo extremo, o relativismo se assenta em uma idéia intimista da moral, que admite somente minha própria consciência como instância julgadora única e exclusiva de meus atos. O relativismo moral precisa ser superado por um consenso sobre um núcleo de critérios morais, que representem os valores básicos para uma convivência realmente humana. O gênero humano encontra-se diante desta necessidade radical, sem a qual sucumbirá à destruição.
O segundo aspecto desta crise de valores é a concepção de felicidade socialmente preponderante, que se baseia no êxito ou admiração social, dependentes da posse de bens materiais e de poder. É uma idéia de felicidade que se fundamenta na exaltação narcisista do próprio eu, complementada pela consideração secundária e instrumental dos “outros”. Estes possuem valor quando “servem” ao desenvolvimento de minha própria felicidade e bem-estar. São meros instrumentos.
Entretanto, a dignidade de pessoa é inerente ao homem. Todo ser humano, independentemente de suas características físicas e psíquicas, de suas crenças e de sua conduta, é um valor em si mesmo que, portanto, não pode ser utilizado nem instrumentalizado, transformado em objeto ou em meio para se atingir qualquer finalidade.
A pessoa humana tem valor em si e por si, independente dos outros e de instituições ou leis que apenas visam captar esse valor para apreciá-lo ou balizá-lo. Todas as instituições humanas – particulares ou públicas – devem servir à dignidade da pessoa humana (GS nº291). O respeito à dignidade da pessoa humana e aos seus direitos básicos é requisito mínimo de toda convivência social. Todo intervencionismo que prejudique gravemente a liberdade transforma o sistema político em uma tirania.
Ademais, existe a necessidade de caráter espiritual que afeta a pessoa humana e, indiretamente, a todo grupo social, qual seja a de encontrar o sentido da vida. Em todo ser humano está presente a pergunta: “Para que vivo?”, sendo esta questão central do sentido da vida. Trata-se de necessidades psíquica, mental, espiritual, que afetam o estrato mais sublime da personalidade humana.
A autotranscendência é a marca pela qual se reconhece a pessoa, como "sinal de espiritualidade" que pertence, no mundo criatural, exclusivamente ao homem, sendo esta a razão pela qual só o homem é pessoa e as coisas não o são: o homem é dotado de espírito, enquanto as coisas são carentes do elemento espiritual (alma), que o faz livre, consciente, inteligente e dado à comunidade.
Pela autotranscendência se reconhece, ainda, que o homem está sempre aberto para novos objetivos e novas conquistas, porquanto é o artífice de sua própria vida. Ao nascer, não é um ser acabado. Logo, irá empreender a sua construção, no uso da liberdade e da responsabilidade. Não é um resultado pleno e adquirido desde o nascimento, mas é, antes, mina riquíssima de possibilidades, pela qual a pessoa é, em larga medida, uma conquista.
Toda a dignidade da pessoa decorre do fato de ter sido criada, pensadamente, por Deus: “à sua imagem e semelhança” (Gn 27). Não é imagem inane, morta estática, mas viva e operante como conseqüência de Quem é a representação: “Crescei, multiplicai-vos, dominai, cultivai o Éden”. A pessoa humana é, assim, memória viva de Deus, e-vocando em sua perfeição a de Deus: liberdade, bondade, inteligência, verdade, beleza “emoções”, poder criativo.
Portanto, o que há de mais “sagrado” no mundo criado visível é a pessoa humana (em qualquer um de seus “estágios”): desde o óvulo fecundado, (início) até o seu fim natural nesta vida terrena e provisória (“finis status viae”). (Elimina-se, assim, o aborto, a eutanásia e o abuso da retirada de células-tronco de um embrião para outro indivíduo).
A pessoa humana foi criada por Deus, tendo como paradigma a Natureza Humana (também criada) de Cristo. Esta Natureza Humana é a primeira das criaturas (“primogênita”) porque “a seu molde foram criados os demais seres nos céus (anjos) e na terra” (Cl 1,15-16). A perfeição das criaturas se escalona na razão em que mais se achegam ou distanciam da “criatura primigênia”, seu paradigma.
Por isso a pessoa humana é superior às demais coisas. Por isso também seus direitos e deveres são universais e invioláveis: independentes de qualquer “injunção” posterior. Assim, o homem é um ser original na escala dos seres, ligado à pessoa do Verbo Encarnado a que a Natureza Humana d’Ele está hipostática e perenemente ligada (pela Encarnação). Deus é intemporal ou supratemporal, não há “antes” e “depois” da Encarnação para Ele: é um só plano eterno de amor.
A pessoa humana é um composto psico-somático coadunado em uma realidade singular. Daí, que o cuidado com o elemento psíquico-espiritual, escolhido desde sempre para a santidade ( cf. Ef 1, 4), associa-se ao respeito e devotamento ao corpo, porquanto se destina à ressurreição em Cristo e por Cristo. Jamais pode haver preferência ou desrespeito de um elemento em favor do outro, pois, impreterivelmente, cair-se-ia no espiritualismo abstrato ou no crasso materialismo com todas as conseqüências.
Finalmente, podemos afirmar que cada pessoa – como imagem e semelhança de Deus – é destinatária (partícipe) da felicidade do Criador, visto ser chamada à dignidade de filho e filha de Deus através da obra de amor do Único Filho (Ef 1, 5). Tem direito – como herança – à felicidade de Deus!
Todas as circunstâncias e características mencionadas estão a indicar que o homem é um ser único e inconfundível: é uma pessoa. Cada pessoa tem consciência de ser obra de um Criador que, no ato de criação o fez à Sua imagem e semelhança, além de o haver criado por amor, visto não existir outra explicação para que o homem ocupasse seu lugar no Mundo e na História.
Estes argumentos são profundamente questionadores das nossas consciências. Diante de um mundo que tanto defende a igualdade de direitos, como abrigar a odiosa discriminação entre seres humanos com /e sem direito à vida? Sobre quais alegações e critérios se fundamentaria tal tipo de decisão? Além disto, para nós, que cremos, sobressai o argumento definitivo: Todo ataque à dignidade humana “é injúria ao próprio Deus, cuja imagem é o homem” (Documento de Puebla, n.306).

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